sexta-feira, 20 de maio de 2011

A ponta do Nariz ( Machado de Assis em : Brás Cubas)

Texto retirado do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas.


Capítulo XLIX
A ponta do nariz



Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida...
Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do Doutor Pangloss* é que o nariz foi criado para o uso dos óculos – e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei como a única, verdadeira e definitiva explicação.

Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar para a ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo o efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se como as primeiras tribos.

Ouço daqui uma objeção do leitor: - Como pode ser assim – diz ele – se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando concentrado, com os olhos para baixo e para frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que outro chapeleiro... Neste instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao individuo. Procriação, equilíbrio.

Entendeste, amado leitor o ensejo de eu querer demonstrar esse lindo texto de Brás Cubas?

Vamos contemplar o nosso próprio nariz? ;)

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* Personagem do Cândido, de Voltaire (François- Marie Arouet, 1691-1778), que encarnava o otimismo, aplicando sempre a máxima do filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716) “ Tudo ocorre bem no melhor dos mundos”. (N. do E.)

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